sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

O CLIENTE SEMPRE DIZ A VERDADE? PROFESSOR LENILDO MÁRCIO DA SILVA



As vezes vejo alguns colegas reclamando que em determinadas fases cruciais de um processo descobriram que o cliente estava mentindo para ele.

Na minha experiência de vida, e profissional, isso é inerente ao comportamento humano. Sempre que uma pessoa acredita que determinada informação possa, de alguma forma, lhe prejudicar ou prejudicar os seus direitos, ele oculta ou distorce aquela informação.

Desta forma, compreenda, o cliente nunca, nunca, nunca, vai lhe contar toda a verdade. isso porque ele crê que quanto mais o advogado acreditar na sua versão, no seu direito, ou na sua inocência, melhor ele e os seus direitos serão defendidos pelo profissional.

Cabe ao advogado(a) através de sua experiência de vida e profissional perceber a verdade contida nas entrelinhas das provas processuais e do comportamento e personalidade de seu cliente. E o que fazer com essa verdade? Apenas aprender sobre a alma humana e suas facetas, uma vez que não somos juízes, e não nos cabe julgar e/ou decidir o destino de terceiros, mas sim garantir a defesa eficiente de seus direitos.

O cliente que fala toda a verdade para o seu advogado não existe. Isso é coisa de livro, novela, cinema, ou seja, ficção. Uma vez, ao chegar para realizar uma audiência, encontrei uma juíza e um promotor, conhecidos de longa data e de diversos atos processuais, reclamando que na audiência anterior o réu mentiu, as testemunhas mentiram, e foi uma "mentirada" só. Sorri e brinquei com eles dizendo: "Ora, se só queriam a verdade deveriam ter sido advogados criminalistas!".

Perceberam o que eu disse? Brinquei com eles... porque, em verdade, nem o criminalista a tem.

Isso me faz lembrar um poema de Carlos Drummond de Andrade, intitulado "A verdade", o qual uso eventualmente para abrir os meus discursos de defesa perante o Tribunal do Júri, e que abaixo transcrevo:

"A porta da verdade estava aberta, 
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.

Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade.

E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os dois meios perfis não coincidiam.

Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram a um lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos. 
Era dividida em duas metades,
diferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
As duas eram totalmente belas.
Mas carecia optar. Cada um optou conforme
seu capricho, sua ilusão, sua miopia."


Para ilustrar o que eu disse, conto a vocês, a seguir, o caso de um cliente que defendi, acusado de matar uma pessoa e que alegava que quem havia realizado o crime, na verdade, foi um conhecido criminoso de alcunha CHUM.

O Ministério Público denunciou-o pela morte da vítima e ele negava peremptoriamente a realização da prática criminosa, atribuindo-a a CHUM. Analisei o processo e realmente as provas que incriminavam-no eram circunstanciais e frágeis, e haviam indícios e motivações para que CHUM efetivamente houvesse matado a vítima, o que autorizava o desenvolvimento de uma tese convicta de negativa de autoria. E assim o fiz. Defendi com todo empenho, unhas e dentes, a inocência de meu cliente, acusando CHUM, e finalizando biblicamente o meu discurso de defesa inicial, apontando para o cliente sentado no banco dos réus de cabeça baixa, e dizendo: "E CONHECEREIS A VERDADE E A VERDADE VOS LIBERTARÁ".

O meu amigo e adversário de tribuna e convicções, o promotor de justiça, passou por mim, deu um sorriso e disse: " BRILHANTE, SÓ TEM UM PEQUENO PROBLEMA...".

E saiu sorrindo e sem dar maiores satisfações. Conhecendo-o bem, e sabendo que era tão inteligente e hábil na tribuna quanto eu, me preparei para a surpresa que viria na sua réplica, pois assim eram os nossos encontros nos embates do júri, cheios de surpresas de lado a lado.

Enfim, o meu amigo promotor voltou á carga na réplica afirmando que seria impossível ao CHUM ter realizado o crime, pois, quando o crime foi realizado já faziam quatro dias que CHUM estava enterrado.

Pois é Senhores, Senhoras e Senhoritas, CHUM tinha morrido quatro dias antes do crime acontecer.

Evidentemente que não ia aceitar apenas a palavra do meu amigo promotor, apesar de toda consideração e respeito que detinha por ela, e me aproximei da douta magistrada, por quem também nutria grande estima, e considerei que o meu amigo promotor teria que mostrar prova do que disse, ou seja, a certidão de óbito.

Na hora a magistrada disse para mim: "DR. TEM! VENHA COMIGO."

Nos retiramos discretamente do plenário, através de uma porta lateral, ao lado de sua mesa, e entramos numa pequena sala ao lado onde ela me mostrou a documentação. Realmente CHUM tinha morrido quatro dias antes. Era impossível que fosse ele o autor do crime que o meu cliente insistia em imputar-lhe. Ela me recomendou que o aconselhasse a mudar seu depoimento e tese de defesa ainda na tréplica, ao que lhe respondi que não podia fazer isso, pois além de meu cliente estar convicto que para ele a negativa de autoria era a melhor tese de defesa ele havia mentido para ela, para os jurados e principalmente para mim, seu advogado (olha que absurdo "nénão"?).

Mas disse a ela que o chamaria, conversaria com ele e lhe daria uma oportunidade para dizer a verdade, e que se ele o fizesse, em tréplica, alteraria ainda a linha de defesa dele para o homicídio privilegiado por relevante valor moral, uma vez que a vítima havia ameaçado a vida dele e de seus familiares, mas que, porém, não lhe revelaria da existência da certidão de óbito.

Saímos, e então chamei meu cliente e retornamos para a mesma sala onde anteriormente conversei com a juíza. Expus a situação para ele e disse que se o promotor havia dito que CHUM havia morrido era porque ele tinha provas e certamente iria apresentar a certidão de óbito como prova, que se houvesse sido ele era melhor confessar, eu arrumaria outro depoimento para ele em plenário e na tréplica mudaria a defesa para homicídio privilegiado, reduzindo, possivelmente, sua pena, mas ele, irredutível, só repetia para mim: "FOI O CHUM DR., FOI O CHUM!"

Pedi aos guardas que o reconduzissem ao plenário, e para lá também retornei por uma porta lateral próxima á mesa da juíza, a qual, ao me ver entrar porta adentro olhou-me esperançosa, ao que simplesmente lhe respondi o resultado da minha conversa de dez minutos com o meu cliente com um balançar de ombros, com braçoa abertos e a seguinte frase: FOI O CHUM!

Na tréplica não havia muito mais a dizer, a não ser reforçar a tese de defesa inicialmente desenvolvida e deixar o cliente colher os frutos de sua mentira: "SENHORES E SENHORAS JURADOS, FINALIZO MEU DISCURSO DIZENDO QUE O RESULTADO DO JULGAMENTO DE HOJE É DE FÁCIL RESOLUÇÃO. PEÇAM A CERTIDÃO DE ÓBITO DE CHUM ANTES DE DECIDIREM. SE ELE MORREU APÓS A DATA DO CRIME, ABSOLVAM O RÉU. MAS SE ELE MORREU ANTES DA DATA DO CRIME, ENTÃO MERECE ACOLHIDA A TESE DO PROMOTOR DE JUSTIÇA, POIS, NESSE CASO, MENTIU O RÉU PARA TODOS, INCLUSIVE PARA MIM!".

O resultado do julgamento os Senhores, as Senhoras e as Senhoritas já sabem: ele foi condenado, pois a certidão de óbito foi mostrada.

Alguns poderiam questionar minha conduta, mas a minha consciência está tranquila, pois até o fim adverti-o sobre as consequências de uma eventual mentira, fiz a defesa do jeito que o cliente queria e acreditava ser o melhor para ele e apontei para ele outra saída, caso assumisse sua culpabilidade pela prática criminosa. E isso era tudo que de mim poderia ser profissionalmente exigido.

No final, esqueci alguns livros no plenário de julgamento, e a assessora da juíza alguns processos e retornamos para buscar nossos pertences, momento em que presenciamos o réu em prantos, abraçado à sua mãe e confessando o crime: FUI EU QUEM MATEI ELE SIM MÃE, ME DESCULPE, ME PERDOE!

AlI, naquele dia, perdi minha inocência profissional, e aprendi que o cliente nunca conta a verdade, ou, pelo menos, toda a verdade para o seu advogado, e adotei a prática de sempre advertir os meus clientes: "A VERDADE DO PROCESSO EU JÁ SEI. LI O PROCESSO. ESTUDEI O PROCESSO. CONHEÇO TODO O PROCESSO. AGORA QUERO SABER A SUA VERDADE EM TODOS OS DETALHES, E LEMBRE-SE QUE NESTE MOMENTO SOU IGUAL AO PADRE COLHENDO SUA CONFISSÃO FINAL ANTES DA MORTE, ENTÃO, VOCÊ NÃO PODE MENTIR PARA MIM, SE MENTIR VOCÊ, NO FINAL, SERÁ O ÚNICO PREJUDICADO!".

2 comentários:

  1. Achei que vc teria um grande final para essa história, mas me perdoe pelo comentário, vc não conseguiu convencer o seu cliente, não tem chance de convencer o jurado. Sou criminalista a muitos anos, e o mais difícil sempre é convencer o cliente, Sempre foi assim. Mesmo no último instante, na última hora, O advogado tem que convencer o cliente o mudar a fala, a oferecer o melhor argumento. Mas já passei por isso também, e o resultado foi tão ruim quanto ao do colega.

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    1. Hahahahahahahahaha, desculpe decepcioná-lo Weber Farias, a intenção do relato é apenas advertir os colegas de profissão sobre a vida profissional "como ela é". Um abraço e sucesso!

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