segunda-feira, 16 de novembro de 2015

ARTIGO - A IMPRENSA E A NOTÍCIA DO CRIME

A IMPRENSA E A NOTÍCIA DO CRIME 

Todos os dias os jornais e as televisões massacram o princípio da inocência. Consagrado no artigo 5°, inciso LVIII, da Constituição Federal, estabelece que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória", mas, diariamente, este direito individual, garantido pela nossa Carta Magna a todo cidadão brasileiro, é solenemente ignorado. Liga-se a televisão e logo tem-se o desprazer de assistir a um desses muitos programas que noticiam crimes mostrando a imagem constrangida de uma pessoa acusada da prática de algum delito. O repórter geralmente faz as perguntas impondo ao acusado a pecha de criminoso: "Por quê você cometeu o crime? Como você realizou o crime? Está arrependido do que fez?" E invariavelmente obtém um silêncio que é próprio da situação extrema  em que a pessoa se encontra, sendo esta por muitas vezes incapaz mesmo de responder às mais simples perguntas, entretanto, tal atitude, não raro, é interpretada como indicação de culpa, pois "quem cala consente". 

Aliás, mesmo que o acusado naquele momento tenha disposição para responder ás perguntas do entrevistador, de nada adiantará à sua defesa, pois que crédito obterá dos telespectadores aquele cidadão de cara amassada, geralmente sem camisa, algemado, procurando esconder o rosto, frente aos garbosos e imponentes policiais que efetivaram sua prisão? Principalmente porque logo após a entrevista, o repórter ávido pela audiência, fará algum comentário descrente frente as alegações do acusado, comparando de imediato as informações fornecidas pelos valorosos policiais, sobre os quais a credibilidade é absoluta e as declarações são quase dogmas, sendo corroborado pelo apresentador, que a custa do acusado valoriza sua moral e honestidade perante a sociedade (alguns até conseguem eleger-se para cargos públicos a custa disso). 

Pronto, está estabelecida a culpabilidade do acusado. Perante a sociedade o acusado já é o culpado, e a partir de então será tratado como tal por todos. Nem bem começou o inquérito policial e o acusado já foi condenado. Nem começou a ação penal e o acusado já é réu. O princípio da inocência? Esqueça, de muito tempo foi substituído pelo princípio da culpabilidade, estabelecido pela imprensa e pela falsa percepção da realidade que esta muitas vezes transmite, onde todos são culpados até que provem a sua inocência. 

Da mesma forma em relação à imprensa escrita, jornais e revistas semanais, que muitas vezes estampam a foto e o nome completo de pessoas atribuindo a estas a prática de delitos, e muitas vezes até o fazem de forma ostensiva, reservando muitas páginas para relatar um assunto que julguem vender bem. Relacionam todos os indícios e possíveis provas que indiquem a culpabilidade do acusado, e transcorrem vários e vários parágrafos sobre deduções e hipóteses cabíveis ao caso em análise, estabelecendo um pré-julgamento e inegavelmente influenciando a opinião pública. Entretanto, quando por azar do destino, aquele pobre coitado que foi acusado é inocente, não se cuida de dar notícia de sua inocência no mesmo espaço utilizado para atacar seu nome e sua imagem, e, verdade seja dita, muitas vezes nem mesmo se noticia tal fato, talvez porque não venda tantos jornais e revistas. O CASO DA ESCOLA BASE, clássico entre os erros cometidos pela imprensa, é um bom exemplo disso. Foi capa de várias revistas semanais e jornais, com direito a no mínimo quatro folhas de revista e duas de jornal quando tratou-se de acusar os proprietários e funcionários da escola dos mais terríveis crimes contra as crianças que ali frequentavam, mas quando foram inocentados e descobriu-se que tudo não passou de um terrível engano, tal informação mereceu apenas meia página das revistas semanais que informaram o fato. 

A propósito, quando comprovou-se a inocência dos acusados estes já tinham ido à falência, perdido o emprego, o nome, a moral, a imagem, a privacidade, eram tratados como os mais terríveis bandidos por todas as pessoas da sociedade a que pertenciam e sofrido vários problemas psicológicos e várias humilhações. Foram inocentados pela justiça, mas há muito já haviam sido condenados pelo 4° poder: a imprensa. 

Alguém diria que eles têm o direito a ingressar com uma ação indenizatória por danos morais, materiais e lucros cessantes, que certamente ganhariam, fazendo jus a uma bela indenização. Mas, a esta afirmativa, cem por cento correta, caberia a seguinte indagação: Quanto custam a honra, a dignidade, a imagem, a privacidade e a saúde mental de uma pessoa? 

Alguém acredita realmente que qualquer valor será o suficiente para sanar a lesão que esses direitos dos acusados sofreram? 

Alguém verdadeiramente acredita que o dinheiro tem o poder de curar a alma dessas pessoas de toda dor, sofrimento e humilhação que sofreram durante todo esse tempo? 

Uma resposta afirmativa seria desconhecer o sentido da palavra humanidade e descrer de uma força superior responsável pela criação e manutenção do universo. Seria despojar-se de todo e qualquer sentimento e emoção que possa existir na alma humana. 

Mas consideremos ainda uma outra situação. A maioria das pessoas que são presas e injustamente acusadas são pobres. Não têm educação, nem cultura, quanto mais ciência de seus direitos, pois o estado apesar de nos cobrar altos impostos é incompetente para fornecer aos seus cidadãos condições plenas de desenvolvimento enquanto pessoas . Quando, a duras penas, conseguem escapar das falsas imputações criminosas de que foram vítimas, tudo que querem é sair daquele frio e cruel lugar que é  a prisão e tentar esquecer que algum dia passaram por uma tal humilhação. 

Inegável a importância da imprensa escrita e falada na vida da sociedade moderna, principalmente jornais, rádios e televisões, como importantes e democráticos veículos de informação. E fundamental é que exerça a sua função de informar a população de forma livre e independente, com a liberdade de expressão e manifestação de pensamento que são garantidos pela Constituição Federal, no artigo 5°, em seus incisos IV e IX, a fim de que efetivamente possa fiscalizar as irregularidades que vez ou outra uma autoridade pública realiza, que divulgue campanhas assistenciais e de saúde, que noticie eventos, e que informe á sociedade aquilo que diariamente ocorre em seu universo e que seja de relevante importância ser conhecido, para melhoria ou manutenção da qualidade de vida de seus membros. 

Entretanto, o profissional de imprensa, assim como todos os outros, deve exercer com responsabilidade a sua atividade, consciente da importância de sua atuação na dinâmica social. 

Deve informar com responsabilidade, exercendo a sua função social e preservando os direitos à honra, à imagem e à privacidade dos indivíduos, pois tais direitos são igualmente preservados pela Constituição Federal. 

As pessoas que possuem o hábito de todos os dias dirigirem-se até a banca ou padaria mais próxima de sua casa, adquirirem um exemplar do jornal de sua preferência e lê-lo, o fazem por um único e simples motivo: desejam informar-se. 

E por quê o fazem através do jornal ou televisão de sua preferência? Porque acreditam na seriedade das pessoas responsáveis pela elaboração das notícias e na veracidade das informações ali contidas. 

Do acima exposto, percebe-se então a importância da imprensa escrita e falada como formadora de opinião na sociedade, transmitindo as informações ali elencadas como uma verdade absoluta dos acontecimentos narrados. 

A população que toma conhecimento do fato acredita na veracidade da informação prestada pelo profissional de imprensa, e desenvolve suas idéias, julgamentos e ações sociais fundamentada nessa orientação. 

E todos os dias, todos os dias, esse fato se repete. Comete-se um crime, a polícia inicia suas investigações prende suspeitos e pronto, aparece a grande manchete: POLÍCIA PRENDE OS CRIMINOSOS QUE ASSALTARAM O BANCO; POLÍCIA PRENDE O HOMEM QUE MATOU O RAPAZ; POLÍCIA PRENDE O ESTUPRADOR DA REGIÃO NORTE. 

Parece que ninguém se preocupa com a pessoa do acusado. A impressão que se tem é de que a partir do momento que passa a pairar sobre a cabeça uma acusação ele deixa de ser gente e perde todos os seus direitos constitucionais garantidos. Ninguém se preocupa em responder a um processo indenizatório: nem os policiais que forçam o acusado a mostrar seu rosto na televisão nem os profissionais de imprensa que, violando o princípio da inocência e as garantias constitucionais à imagem e privacidade do acusado, divulgam suas imagens e expõe seus familiares a constrangimentos, muitas vezes violando até mesmo a intimidade do domicílio. Por quê? Porque uma indenização que paguem a uma pessoa que efetivamente acione a justiça e faça valer seus direitos constitucionais é muito menor que o lucro obtido com a vendagem de jornais e revistas e dos elevados índices de audiência obtidos pelas televisões com a exploração da exposição de falsas acusações. 

O fato de alguém ser indiciado e responder a um processo penal não é prova absoluta de sua culpabilidade, pois essa prova se fará durante o desenvolvimento do devido processo legal, e, por mais indícios e provas que se apresentem em desfavor do acusado, só poderá receber a qualificação de CRIMINOSO, após o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, nos termos da lei. Agir de outra forma é pré-julgar, é desconhecer o sentido da palavra justiça, pois, antes mesmo de se dar oportunidade de defesa, condena-se. 

O incrível dessa situação é que ninguém percebe que em assim agindo não é só o acusado que recebe os efeitos deste inconsequente pré-julgamento, mas, acima de tudo, a própria sociedade, que fragiliza-se com a perda dos direitos individuais de seus membros, que perdem a coragem e a esperança em protestar contra o que está errado, uma vez que percebem que os dispositivos legais que deveriam garantir-lhes o direito e a segurança para travar tal luta nada valem, para nada servem, não garante-lhes, efetivamente, nada, sendo muitas vezes desprezados pelas próprias autoridades, que deveriam zelar pelo seu cumprimento. 

Imperioso que lutemos contra esse massacre do princípio da inocência, diariamente, sem descanso, a fim de restituirmos-lhe a sua eficácia e praticarmos a defesa de nossos direitos constitucionais, a fim de fortalecer-lhes, e necessária é a conscientização do profissional de imprensa da importância e responsabilidade de seu papel social, que impõe-lhe limites éticos na sua função de informar, obrigando-lhe ao respeito dos direitos individuais. 

É importante que a pretexto de informar não se ignore os direitos fundamentais do indivíduo, atropelando-os sem escrúpulos. Quando ignora-se esses princípios realiza-se uma conduta tão criminosa quanto aquela que busca-se noticiar a qualquer custo. Talvez até mais, pois tal enfraquece a segurança e os direitos não só do cidadão, mas da sociedade como um todo, criando pouco a pouco, pelo paulatino enfraquecimento dessas garantias individuais, o ambiente propício para o abuso de poder, que geralmente conduz os países à perda da sua liberdade e da sua democracia, arrebatadas por um tirano, que valendo-se da fragilidade e descrença plantadas no seio social, retira com mãos de ferro a autodeterminação de um povo. 

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