Longe se vão 22 (vinte e dois) anos da realização da minha primeira audiência, e, pasmem, sozinho. Isso mesmo, pois, em 1.994, quando os Juizados Especiais estavam recém implantados, não havia tanto rigor quanto a participação/atuação do estagiário no processo, desde que este evidenciasse capacidade ao magistrado e fosse, posteriormente, secundado pelo seu Professor Orientador de Estágio, o qual, como advogado, legitimaria todos os atos realizados por aquele.
Pois bem, essa também era uma outra época em relação aos estágios, bem diferente de hoje, onde o Professor Orientador senta com o estagiário(a), conversa, orienta, sugere livros para fundamentar suas peças, e, após a confecção da petição, senta com ele para revê-la, corrigir erros de ortografia, acentuação, etc., dando a este toda a tranquilidade para desenvolver suas capacidades jurídicas, desde que o queira, é claro.
Na minha época, o Professor só falava a frase mágica: "SE VIRA, SE ERRAR ESTÁ REPROVADO". Pronto, a mágica começava a acontecer.
E olha que também era a época em que a tecnologia não nos ajudava, pois não haviam milhares de modelos de petições para consultar na internet, não tinha como fazer ctrl+c ctrl+v, era na base da máquina de datilografar e do então famoso errorex. Muita modernidade era a máquina elétrica, que, magicamente, tinha um sistema de apagar erros que era, à época, o sonho de todo estagiário.
Pois bem, devidamente situada a época, circunstâncias e momento do ato, estava eu preocupado com a realização da minha primeira audiência, e sozinho, pois a minha audiência era no "Juizado de Pequenas Causas" e o Professor Orientador tinha outras audiências no Fórum Cível (portanto, muito mais "importantes") e não teria como ir na minha, consequentemente, eu deveria realizá-la sozinho, que depois ele passaria na Secretaria do Juizado para assinar a ata da audiência.
Então é isso, eu, com 19(dezenove) anos de idade, sem nunca ter feito nenhuma audiência, ia fazer minha primeira audiência sozinho, e, com perdão da má expressão, se fizesse "cagada", estava reprovado. Simples e objetivo. Altamente estimulante. Todavia, não adianta reclamar do tamanho do abacaxi, ele está ali, precisa ser descascado, e é você que tem que descascar, por isso, ao trabalho.
Duas estratégias óbvias foram inicialmente desenvolvidas: 1) Estudar todo o processo de ponta a ponta (cada folha, cada palavra, cada letra) e 2) Fazer acordo.
Senhores, senhoras, senhoritas, fundamental é estudar e conhecer minuciosamente o processo acerca do qual se desenvolverá a audiência, pois que, somente conhecendo cade detalhe do mesmo, você poderá fundamentar com eficácia sua argumentação e aproveitar eventuais oportunidades surgidas com eventuais falhas da outra parte. E isso lhe dará a segurança necessária para a realização do ato processual com tranquilidade.
A situação era a seguinte: Cliente comprou máquina para fazer pães no valor de R$ 3.000,00 (três mil) reais, e a máquina não funcionou, estava com defeito. Pegou a máquina, levou ao fabricante, e queria a troca da máquina ou a devolução dos R$ 1.000,00 (um mil reais) que pagou à época e o cancelamento do restante do valor da dívida pela aquisição da máquina. O Fabricante pegou a máquina de volta, não devolveu o dinheiro e ainda retirou o cliente do estabelecimento à base de agressão e mandando o mesmo procurar os seus direitos. Foi o que ele fez, e acabou indo para o NPJ em busca de um advogado para acompanhá-lo na audiência, e, lá chegando, foi direcionado para o meu atendimento. O caso já tinha 06(seis) meses.
O próprio cliente havia feito a reclamação no Juizado, e apresentado a documentação relativa ao caso, pedindo a devolução do dinheiro, correção do valor e danos morais, totalizando, à época, o valor de R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais). Apresentou 03(três) testemunhas
Pois bem, a audiência estava marcada para as 13:30h, e às 12:50h eu já estava lá, não só para conversar com o cliente e orientá-lo, mas também para conversar com as testemunhas, saber o que elas conheciam do assunto e o que iriam dizer. E, principalmente, para propor o acordo para a outra parte, afinal, se aceitasse, todos sairiam contentes e eu ainda poderia ir para a academia treinar (Karatê-Dô Tradicional).
Procurei o advogado da outra parte, me apresentei a ele, e indaguei-o da possibilidade de realizarmos um acordo, com o cliente dele pagando ao meu os R$ 1.000,00 (um mil reais) inicialmente pagos, sem juros e correção, e ainda daria a ele o prazo de 30 (trinta) dias para efetivar o pagamento, ao que ele respondeu que aceitaria fazer o acordo desde que o cliente dele pagasse ao meu R$ 600,00 (seiscentos reais), parcelados em duas vezes, trinta e sessenta dias.
Informei-o que não seria possível tal acordo, pois o meu cliente havia pago ao dele R$ 1.000,00 (um mil reais), e se aceitasse esse acordo estaria prejudicando-o em demasia, pois, com o pagamento dos R$ 1.000,00 (um mil reais) inicialmente pagos, sem correção, ele já estaria levando prejuízo. Ele insistiu nos termos dele, e não houve acordo.
Aguardamos o horário da audiência, fomos apregoados, entramos, e o magistrado tentou, inicialmente a composição. Repetimos a mesma argumentação de minutos antes de adentrar para audiência, e não houve acordo. Não havendo acordo, o juiz passou imediatamente para a instrução (nessa época era assim, bons tempos).
Antes de iniciar a instrução, porém, a outra parte pediu licença ao juiz e perguntou se poderia se ausentar, pois o advogado dele tinha poderes para representá-lo em qualquer hipótese e ele tinha "coisas mais importantes para fazer".
O juiz concordou, e ele se despediu do advogado, olhando com menosprezo para meu cliente, arrogantemente certo da sua vitória.
Ele saiu, retomamos o ato processual, e o advogado dele apresentou a Contestação, alegando, inicialmente, da Incompetência do Juizado Especial para apreciar o caso, pois o negócio em análise havia sido entabulado entre pessoas jurídicas, e estava, portanto, fora da competência de julgamento do Juizado.
Essa eu não esperava. E agora?
Entendi então o porquê da falta de interesse do advogado da outra parte em realizar o acordo, e o porquê da arrogante certeza do cliente dele de que aquela audiência não iria virar nada. E agora?
Agora "meu chapa", o abacaxi estava ali na minha frente e eu iria ter que descascar. Principalmente porque o ilustre magistrado com a Contestação na mão virou para mim e me disse: "DOUTOR, O QUE O SENHOR TEM A DIZER SOBRE ESTA ALEGAÇÃO?"
Caraca! Primeira audiência, estagiário cheirando a leite (menos de mês no estágio) e "Sua Excelência" me chamando de "doutor" e ainda queria que eu desse uma resposta a uma preliminar de incompetência que eu nem estava esperando? Socorrooooooooo!
O que fazer? Mais uma vez, o óbvio: "EXCELÊNCIA, POSSO VER A CONTESTAÇÃO E OS DOCUMENTOS APRESENTADOS PELA OUTRA PARTE?"
Enquanto isso ganhava mais tempo para pensar.
Ao que o ilustre magistrado me respondeu: "CLARO, DOUTOR, AQUI ESTÁ".
Comecei a ler a Contestação, e esta, basicamente, se fundamentava na preliminar de incompetência em razão do negócio ter sido entabulado entre pessoas jurídicas. O advogado da outra parte estava convicto que esta preliminar passaria, e ela, por si só, naquele momento, bastaria para colocar por terra as pretensões do meu cliente.
Mas o melhor amigos, como dizem, sempre fica para o final. Depois de ler a Contestação, comecei a olhar os documentos, e, nas duas últimas folhas estava minha tábua de salvação, meu sol que iluminou meu dia: NOTAS PROMISSÓRIAS.
O advogado da outra parte apresentou com sua contestação duas notas promissórias que meu cliente havia assinado para garantir o pagamento do restante do valor da máquina de fazer pão, que totalizava R$ 3.000,00 (três mil reais). Ora, senhores, senhoras e senhoritas, se o negócio de Compra e Venda da Máquina de fazer pão houvesse sido concretizado entre pessoas jurídicas, deveriam haver ali DUAS DUPLICATAS MERCANTIS, E NÃO DUAS NOTAS PROMISSÓRIAS!
Agora, com sorriso no rosto, de nuca a nuca, e já com certa ironia na voz, levantei minha cabeça da documentação analisada, olhei para o magistrado e disse:
"EXCELÊNCIA, CREIO MESMO QUE O NOBRE PATRONO DA OUTRA PARTE ESTÁ PROFUNDAMENTE EQUIVOCADO QUANTO À SUA ARGUMENTAÇÃO DE INCOMPETÊNCIA DESTE JUIZADO, POIS COMO VOSSA EXCELÊNCIA PODE CONSTATAR NESTAS DUAS ÚLTIMAS FOLHAS, O DOUTO PATRONO APRESENTOU DUAS NOTAS PROMISSÓRIAS, E TODOS NÓS SABEMOS QUE NOTAS PROMISSÓRIAS CARACTERIZAM NEGÓCIOS REALIZADOS ENTRE PESSOAS FÍSICAS OU ENTRE PESSOA JURÍDICA E PESSOA FÍSICA, PORTANTO, SEGUNDO A PRÓPRIA DOCUMENTAÇÃO APRESENTADA PELO RÉU EM SUA CONTESTAÇÃO, NÃO MERECE ACOLHIDA A PRELIMINAR, SENDO ESTE JUIZADO PLENAMENTE COMPETENTE PARA JULGAR ESTA AÇÃO".
Senhores, senhoras, senhoritas, naquele momento, EU ERA O CARA! Primeira audiência e tinha acabado de colocar no chinelo o advogado da outra parte. Lavei minha alma de toda arrogância e menosprezo que foram dedicadas a mim e ao meu cliente pela outra parte e seu patrono. E, com aquele argumento, ganhei a causa como Ayrton Senna ganhava as sua corridas: DE PONTA A PONTA.
O magistrado perguntou ao advogado da outra parte o que ele tinha a dizer, e, depois da minha argumentação, ele não tinha nada. O juiz rejeitou a preliminar e deu seguimento ao julgamento. O juiz perguntou a mim se tínhamos testemunhas, disse que sim, tínhamos 03 (três). Perguntou ao advogado da outra parte, ele não tinha nenhuma. O juiz mandou entrar minhas testemunhas, e a cada testemunha ouvida, o advogado da outra parte ia se encolhendo mais e mais na sua cadeira.
Ao final da instrução, o juiz sentenciou, condenando a outra parte a pagar R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais), ao meu cliente, em 15(quinze) dias.
Queria ser uma mosquinha para ter visto como o advogado explicou ao seu cliente que perdeu aquela ação para um estagiário.
Após a sentença, o advogado quis fazer acordo comigo: DOUTOR (agora também eu era doutor para ele) TEM COMO A GENTE FAZER UM ACORDO PARA PAGAR ISSO AÍ?
Eu respondi : PUXA VIDA DOUTOR, INFELIZMENTE NÃO! EU PODERIA TER FEITO ACORDO COM O SENHOR ANTES DO JULGAMENTO, OU ANTES DA INSTRUÇÃO TERMINAR, PORQUE EU ESTAVA, ENTÃO, REPRESENTANDO MEU CLIENTE. MAS AGORA O JUIZ SENTENCIOU, E ASSIM, ACABOU MINHA REPRESENTAÇÃO. SE O MEU CLIENTE QUISER, O SENHOR PODE FAZER ACORDO COM ELE.
Ao que meu cliente imediatamente respondeu: COMIGO NÃO TEM ACORDO AGORA! AGORA EU QUERO RECEBER TUDO, DO JEITO E NA FORMA QUE O JUIZ MANDOU!
Dessa minha primeira audiência tirei três lições preciosas para minha vida profissional, e que marcam meu estilo de atuação no campo jurídico:
1) ESTUDE SEMPRE O PROCESSO E TODOS OS TEMAS JURÍDICOS E FACTUAIS RELACIONADOS A ELE;
2) JAMAIS SUBESTIME O SEU OPONENTE;
3) TENHA SEMPRE UM PLANO "B".
Estudar, conhecer, deveria ser sempre a diretriz básica de qualquer ser humano, independente de sua área de atuação, mas, para o profissional do direito, estudar é mais do que uma obrigação, é mesmo a essência daquilo que ele é: UM AGENTE DA LEI, DO DIREITO E DA JUSTIÇA!